Sem qualquer espécie de dúvida, o burro sou eu.

Tal como a escravatura, a gatunagem é problema que só existe quando nos encontramos do lado errado da barricada. Tenha um individuo a fortuna de estar enraizado na laia dos gatunos e, talvez nunca na vida se venha a deparar com a desgraça de lhe irem ao bolso. Mais sorte terá gatuno que ouse roubar outro da sua espécie. Aí, não só vê a sua condição melhorada, como ainda receberá dos demais uma palmadinha nas costas. Só assim se explica o douto provérbio Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Curiosamente, ladrão rima igualmente com prisão. No entanto, que saibamos, nenhum ditado por estas bandas joga com a fonética destes dois vocábulos. Para quem acredita na libertinagem nacional, não deixa de ser sintomático que a gente lusa associe o termo ladrão a perdão, deixando ajuizadamente de parte o de prisão, que nada tem que ver com o assunto. Vá lá, livrámo-nos da bênção. Agora, a que propósito falamos neste espaço de ladroagem? Ainda para mais, após um novo longo período de ausência. Pois bem, recentemente, resolvi escolher um dos muitos centros comerciais que proliferam por Lisboa para dois dedos de conversa. Como o adiantado da hora convidava à ultima refeição do dia, a escolha residiu sobre o espaço comum de restauração, destinado a todos aqueles que transportam a comida num tabuleiro. Hora e meia depois de estar sentado, dois homens, na ternura dos quarenta, aprochegam-se à mesa onde me encontrava com o intuito de alertar para o casaco colocado nas costas da cadeira. Um deles dizia-se marido de uma funcionária do estabelecimento em frente, e tinha conhecimento de que aquela era uma zona problemática de centro, com furtos frequentes a serem servidos a todas as horas com o menu do dia. Na altura, agradeci a atenção e aproveitei para tranquilizar o samaritano, confirmando que a carteira se encontrava segura, no bolso de dentro do casaco. Menos de um quarto de hora depois, ao levantar-me para abandonar o local, constato que o casaco está mais leve. As chaves estão lá. O telemóvel também. A carteira não. Viro-me para trás, e vejo os dois conselheiros a jantar serenamente. Pergunto se viram alguma coisa. Garantem que não. Com ar surpreendido perguntam se tenho tudo comigo. Dez minutos antes, tinham advertido para a naturalidade com que desapareciam carteiras por ali. Caramba, estavam mais perplexos do que eu. As peças do puzzle não tardaram a encaixar. Dois agentes da PSP ainda se deram ao trabalho de trocar impressões e revistar os suspeitos, mas a carteira há muito que havia abandonado aquelas paragens. Contudo, foi ao ver toda aquela cena à distância, que me penitenciei pelo ensinamento esquecido de Casablanca (Michael Curtiz, 1943). Creio que Murphy não se debruçou ainda sobre o tema, nem tão pouco teve tempo para formular qualquer corolário sobre o mesmo. No entanto, podemos talvez avançar com um axioma que diz qualquer coisa como: “Quando alguém nos avisa que devemos ter cuidado, é porque cuidado apenas não chega. É preciso também não tirar os olhos de quem nos avisa”. Cheguei a casa, e coloquei o Dvd apenas para rever a parte com o carteirista de Curt Bois, logo no inicio. Acabei por deixar o disco ir até ao fim. Hoje, depois de nova ausência, o regresso ao blog. Se calhar, há males que vêm mesmo por bem. Escusado será dizer que, provas houvesse, e os ditos cujos sentados atrás de mim bem que podiam ter o mesmo fado de Curt Bois.
Alvy Singer