Deuxieme


terça-feira, fevereiro 06, 2007

"BODY RICE" de Hugo Vieira da Silva



Esta reportagem surgiu na sequência de uma entrevista minha realizada ao jovem cineasta português Hugo Vieira da Silva, a qual pode ainda ser oportunamente lida na edição de Dezembro último da revista Premiere. Naturalmente, e devido aos constrangimentos naturais a que o espaço de uma revista deste tipo obedece, raramente é possível publicar entrevistas na sua íntegra. Nem sequer é isso que acontece a seguir (não o teria de ser e tornar-se-ia demasiado exaustivo). Tal como não se repetirá por aqui uma palavra das que foram então, publicadas. A verdade é que a abundância do depoimento gerado (e não utilizado) na ocasião da nossa conversa sobre “Body Rice” inspirou-me a dar-lhes um uso mais devido e leal. Dividida em três partes que neste blog fornecerei ao longo dos próximos dias, decidi-me por uma reportagem mais vasta, adicionada por dados concretos sobre o percurso do realizador e as suas motivações estéticas.
É por isso que, apesar de ter encontrado claras debilidades nesta primeira obra de Hugo Vieira da Silva (expressas aliás no teor da minha nota), não poderia deixar de dar expressão a uma estreante e singular voz no panorama cinematográfico nacional. Uma voz com ideias próprias e visão que jamais teria direito (como jornalista imparcial e defensor do pluralismo) a deixar cair no esquecimento. “Body Rice” pode não ser, na minha opinião, o filme que o cinema português merecia. Mas é invulgar e combativo, cruzando um inquietante retrato de ausência juvenil com a “tradição” das artes plásticas e performativas. A meus olhos, esse abismo neutraliza-o. Contudo, a favor da diversidade de “outros” olhares (e porque estamos também perante um exercício que leva em conta a noção do “outro”), deixo o que até aqui tinha ficado por dizer sobre as origens de “Body Rice”.

David Mariano

NO LUGAR DO CORPO O DESERTO

1:: De Berlim para o Alentejo

Hugo Vieira da Silva fez a si próprio uma pergunta: “Como é que um tipo larga a casa em Berlim e mete-se a viver no meio de um deserto?” Bem resumido, terá sido assim que este cineasta iniciou a sua estreia na longa-metragem depois de uma filmografia até aí composta por vários documentários: “Arte Pública”, “Grupo Puzzle” e “Confesso – Albuquerque Mendes”. Antes, “Body Rice” não era para ser uma ficção. Começou por ser uma curta. Depois teve um formato de documentário. Só mais tarde transformou-se na primeira obra deste jovem realizador portuense, hoje radicado em Berlim, formado em Direito e, mais tarde, em Cinema pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Tem 32 anos.
Dos 32, dedicou quatro anos a concretizar este filme. E em quatro anos, é sabido, tudo pode acontecer. Em quatro anos, já vimos, “Body Rice” foi tudo menos uma ficção. Reparo: “Body Rice” é tudo menos uma ficção. Quatro anos: porque demorou a filmar? “Porque estava continuamente a ser reformulado e o desafio era esse. As coisas mudaram, as pessoas mudaram, os décors mudaram, as tuas ideias mudaram e havia que ter a convicção e o sentido de que aquilo que se acabaria por fazer nunca seria aquilo que se planeara. O importante era eu defrontar-me com o que tinha pela frente, com os meios que tinha. E conseguir manter essa energia para mim foi um desafio muito importante, ter a capacidade de reformulá-lo em permanência.”
Hugo Vieira da Silva conhece muito bem o Alentejo (é esse o “deserto” que questiona), lugar com o qual tem uma relação especial. Uma relação que a maioria do país não partilha ou se esqueceu de partilhar porque o foi ignorando (a não ser de passagem pela A2 Sul a caminho do “britânico” Algarve). A sua primeira tentação foi sair de lá com mais um documentário, projecto financiado pela Gulbenkian, através de vários work-shops experimentais que desenvolveu com quem ali vivia. Em particular, pessoas deslocalizadas, fora do seu sítio de origem, por opção própria ou obrigação (e a lista é vasta: desde biofamílias a ex-prisioneiros alemães, passando por viajantes ocasionais aos próprios alentejanos). Mas a experiência acabou por ser mais do que observar pessoas. Ganhou personagens. Já não queria um retrato da realidade. Queria mais. E a dada altura, o realizador achou que seria importante para ele distanciar-se, porque “uma forma de distanciar e proteger as pessoas era fazer uma ficção.”
História de vários jovens delinquentes lançados na árida paisagem alentejana em projectos de reintegração social, obra desconcertante de corpos desolados num mundo selvagem, monótono, estéril. São eles, as “pessoas” que Vieira da Silva tentou proteger. Adolescentes, portugueses e germânicos. Solitários mudos, de olhar vago e perdido. Esquecidos, abandonados, a rebentar foguetes por diversão ou a atirar pedras a lagoas que secam num qualquer Verão quente. Não apenas, há ainda antigos hippies a morar em roulottes estacionadas, velhos aldeões a ver o tempo passar, crianças livres e nuas a chapinharem na lama. Escrevemos “história”? Talvez a “história” de uma pintura visualmente despojada, em confronto com o seu privado processo de criação. Em ruptura, e ele chega a afirmar que o que pretendia era “uma espécie de pintura branca onde fosse possível recomeçar tudo de novo.” Nunca uma “história” comum, banal, embora a banalidade dos dias fosse um ponto em comum.
“Eu fui parar à ficção um pouco levado pelas circunstâncias. Intuitivamente, acabei por encontrar a minha própria forma de trabalhar os actores, um bocado caótica, não-convencional. Há um lado quase de partir os materiais e ligá-los em si mesmo.” Os materiais “partidos”, esclareça-se, seriam os actores, o som, a imagem, a narrativa. “Sobretudo, recusar uma série de coisas que não me interessavam no cinema. Coisas que eu sabia que não queria, e com as quais não me interessava ir por esse caminho.”
Como assim? “Eu quero fazer um filme de que eu goste, não é?” Certo. “E há alguns filmes no cinema que eu gosto e há outros que não me interessam nada.” De acordo. Logo? “Não me interessava a narrativa tal como é entendida nos cânones de argumento: essa questão da causa-efeito. Acho que as coisas podem ter outra lógica hoje em dia e que essa forma de narrar corresponde a um tempo que já não é o meu. A fórmula canônica do cinema de narrar é qualquer coisa tem que ver com um tempo, um sentido mitológico, uma narrativa, um sentido quase freudiano de causa-efeito, darwinista. No cinema interessa-me fazer qualquer coisa que tenha que ver comigo e com o tempo em que eu vivo, com este momento presente.”

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