Deuxieme


sábado, janeiro 23, 2010

Avatard.

Para melhor se compreender a extensão do impacto provocado pela experiência Avatar – isto é que é recuperação da matéria dada –, será indispensável deitar uma ou duas pitadas de Psicologia à mistura, colher e meia de experiência pessoal, e deixar marinar durante meia hora com o senso comum em lume brando. No final, é retirar a critica quando estiver bem tostadinha por cima, pulverizar com os chavões da praxe, e servir à mesa. Bom apetite. Alguma indisposição, é rever Up como digestivo.

Quando, em finais de Agosto, teve lugar o tão aguardado visionamento de quinze minutos do mais recente título de James Cameron, este que se assina partia de férias para uma mais do que merecida semana – única no último ano, note-se – de dolce fare niente. O significado da data, e o que estava implícito nas duas frentes de lazer, dificultaram a flexibilidade que se impunha para abarcar o melhor de dois mundos. Que, tantas vezes se diz, erradamente, ser impossivel de ter. Veja-se, para não irmos mais longe, o caso de Jake Sully. O melhor deste mundo e do outro na palma da mão. De nada valeram, portanto, os três meses passados a salivar, à espera de tão justa sorte. À mesma hora em que meio milhar de felizardos entrava nas salas para visitar Pandora, antes de todos os outros enteados, Alvy Singer olhava cabisbaixo por uma janela, desejando com todas as ganas à disposição que aquele mega-trailer fosse antes uma mega-banhada. Literalmente. Com detectores de incêndio a funcionar, contribuindo para o espectáculo. Escusado será dizer que a dita semana foi tudo menos de descanso. Pese embora o corpo não tenha sido submetido a grande desgaste físico, psiquicamente, um avatar havia sido criado e transportado a mente para uma qualquer sala de cinema nos antípodas. Seguiram-se cinco penosos meses. A excitação era mais que muita, e as fotografias, trailers e featurettes com que fomos brindados ao longo da espera, em nada ajudaram para combater a ansiedade. Pelo contrário. No fundo, as campanhas de marketing de Hollywood cingem-se à mais simples regra de sedução. Quanto mais se vê, mais se quer ver. Erotismo puro.

Agora, esta angústia conduz-nos a uma outra, e é neste ponto que metemos Carl Rogers ao barulho. Rogers, conceituado psicólogo norte-americano do séc. XX, postulou um dia a existência de dois selves. O self real e o ideal. O ideal será aquele que, como está mesmo a dizer, idealizamos intrinsecamente. O real, aquele que temos na verdade. A distância entre os dois ditará algo pomposo que cognominou de incongruência. Ora, mas porque carga de água é que estamos aqui a falar deste Rogers e fomos buscar estes conceitos à sua bibliografia? Até há bem pouco tempo, Alvy Singer vivia com uma tremenda incongruência cinéfila. Tudo por culpa de George Lucas e Gene Roddenberry. Longe de ser um tipo invejoso – basta ver a parte da banhada para comprová-lo –, confesso sempre ter sentido uma ligeira ponta de ciúmes da geração de 70. Se entendermos a cinéfilia como uma paixão, talvez possamos conceber a ideia de um filme como objecto de amor, sem entendê-la enquanto patologia. Nesse sentido, sempre questionei o porquê de aquela década ter levado com dois fenómenos cinematográficos inter-planetários, e a década de noventa ter ficado a chuchar no dedo. E, quem diz a de noventa, diz também a do duplo zero. A década de oitenta teve The Terminator e Blade Runner, por isso, não se pode queixar muito. No fundo, o que se pedia era o bilhete para um mundo desconhecido. Para uma realidade paralela, estranha ao comum dos mortais, com uma aura única e cativante, que nos fizesse querer comprar um bilhete só de ida, e deixar o T2 do lado de cá a alugar. Alguns poderão indagar, justificadamente, se não tivemos já direito a algo do género neste milénio. E, é bem visto pegar no trabalho de Peter Jackson. Pertinente, mesmo. Contudo, há aqui um aspecto que faz a diferença. Para a mística ser completa, exige-se que a odisseia seja original. Criada de raíz. Ao pegar numa história com mais de meio século, Jackson não atingiu os píncaros da histeria tão habituais nestes casos. Mesmo assim, ainda houve por aí gente a sair de casa para o trabalho apenas com um robe verde, em homenagem a Frodo Baggins. Por esta altura, estarão os detractores a afirmar que Avatar tem tanto de original como a Viva la Vida, e que James Cameron se limitou a recorrer ao Microsoft Paint para dar uma nova tonalidade a Pocahontas. Sempre que um argumento desta natureza vem à baila, recordo o lamento de um guionista pela pro-actividade de outros tempos. Dizia ele – o nome está debaixo da língua, mas uma afta impede a sua remoção – que já não havia histórias boas para contar. Os gregos contaram-nas todas. E, mesmo essas, Shakespeare fez o favor de retocar. É certo que esta contra-argumentação apresenta praticamente as mesmas lacunas da ideia que pretende refutar. Importa então sublinhar que a originalidade, ou falta dela, presente em Avatar, não se assume como critério de avaliação por excelência. Pelo menos, não para este cinéfilo de meia leca. A meio do filme era já perceptível que a incongruência de sempre estava prestes a ser resolvida. E, essa passou a ser a maior preocupação. A certa altura, a dúvida instalou-se. Queres ver que está-se aqui a criar um fenómeno geek como há muito não se via?, disse para com os meus botões. Não responderam. Todas as criticas lidas, todas as achegas dadas aqui pela redacção, todos os artigos que versavam sobre a maluqueira que se havia instalado deixavam antever uma experiência marcante, inovadora e potencialmente agradável. Cambada de mentirosos. O filme é muito mais do que isso. Sabemos que alguma coisa não bate certo quando, já muito depois de termos saído da sala, no recanto do lar, alguém se vira para nós e diz Caramba, é só um filme. Nada mais dilacerante do que uma crua e dura chamada à realidade. Se, pela mão da Disney e Pixar voltamos a ser crianças, com Avatar deixamos de ser quem somos. Na manhã seguinte, pouco minutos depois de ter saído da cama, cedi à tentação de colocar novamente os óculos 3D. A desilusão não podia ter sido maior. Para além de uma tremenda tontura, não se avistaram Na’vis em lado algum. Nem o chão se iluminou à nossa passagem, nem montanhas sobrevoavam as nuvens mais altas. Subscrevo por inteiro a tese que defende nem sempre gostarmos de um filme de que gostamos. Paradoxal? Nem tanto. Há mais de quinze anos que A Lista de Schindler (Steven Spielberg, 1993) se encontra no topo da lista de preferências deste que se assina. Não ocupando o primeiro lugar, está perto. Agora, em década e meia, contam-se pelos dedos de uma mão – e não precisos todos – o número de visionamentos de tão magnífica película. Ao mesmo, todos os dedos do corpo não chegam para contabilizar as vezes que os Dvd’s de O Bom Rebelde ou Casino Royale já entraram no leitor. Um pouco o mesmo que se passa com o cozido à portuguesa. De longe, o prato de eleição de Alvy Singer. Contudo, manjar este mimo da culinária lusa diariamente, não só traria graves consequências estomacais daqui por uns anos, como rapidamente se traduziria numa perda do encanto. O cozido é divinal, mas doseado. Já o bitoque, também sabe sempre bem, e sai com muito mais frequência. No fundo, nem sempre gostamos de rever um filme de que gostámos, e muito. Deste modo, não termos vontade de rever uma determinada obra, não significa necessariamente que não morremos de amor por ela. O contrário, já não é tão verdade. Se, mal o filme termina, a vontade passa por voltar logo ao inicio, então, temos amor para o resto da vida. Não tem nada que saber. A película marcou-nos de tal maneira, que não queremos que se vá embora. Com Avatar, no entanto, aconteceu-me algo que, até hoje, nunca me havia acontecido. E, duvido piamente que algum dia volte a acontecer. Com a voz de Leona Lewis a ecoar das colunas, quando as luzes se acenderam, não só praguejei ruidosamente por o raio do filme ter terminado, como desejei secretamente que o meu mundo não fosse este. Quem é que nunca sonhou viver um romance como o de Rick e Ilsa? Bem, não propriamente como o deles, mas aceita-se a retórica. Quem é que nunca fantasiou em cruzar-se com um Fauno ao fim da tarde? Exacto. Agora, com Avatar, o devaneio não se esgota em conhecer, cruzar, ou viver. O desejo passa por habitar, estar lá, e adoptar outra realidade. O texto já vai mais que longo, e ainda nada que se aproveite foi dito. Contudo, não creio poder ser mais explícito do que isto. Chamem-me avatard, chamem o que quiserem, mas o filme de James Cameron não foi o melhor filme que vi em 2009. Foi a melhor brochura do mundo que desejava coabitar, que alguma vez me foi apresentada. Se há filmes que são mais do que isso, este é um deles. Agora, dizem-me que, tal como em 1977, ano em que Star Wars chegou às salas, talvez o maior êxito cinematográfico da temporada não tenha a pujança suficiente para superar a elegância e simplicidade de um outro título mais pequeno. Parece que anda por aí malta a comparar Jake Sully com Anakin Skywalker, e Woody Allen com George Clooney. Dentro de poucas horas será altura de ver Nas Nuvens. Mais logo falamos.

Alvy Singer

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11 Comments:

Anonymous ana said...

Bem-vindo bruno..

23 de janeiro de 2010 às 13:00  
Blogger Holly said...

Bem vindos de volta :)

23 de janeiro de 2010 às 14:22  
Blogger Tiago Ramos said...

Efectivamente não é o melhor filme do ano, mas gostos à parte, não podemos deixar de o pensar como um marco da História do Cinema.

Avatar é a revolução visual que anunciou, é um dos melhores filmes do ano, da década e de sempre. Não é o melhor, apenas porque a narrativa não acompanha a técnica excelsa. Mas é sem sombra de dúvidas, um marco no Cinema. Agora no Cinema há o Antes de Avatar e o Depois de Avatar.

23 de janeiro de 2010 às 14:39  
Blogger SAM said...

Bem-Vindo de volta! Já cá estava com saudades!

Belo post! Avatar é de facto um bom filme, ums dos meus favoritos do ano passado!

23 de janeiro de 2010 às 18:02  
Blogger Alvy Singer said...

Obrigado a todos pela paciência e simpáticas palavras.

24 de janeiro de 2010 às 00:58  
Blogger mariana said...

Este post é de facto muito longo, mas como diziam os Monty Python ler é a coisa mais fácil do mundo. Quando olhei para ele disse "Meu Deus, eu ler isto tudo..." mas já o li, mesmo antes do pequeno almoço.
Ler é realmente a coisa mais fácil do mundo. Nem sei quanto tempo demorou este post a escrever, mas ainda não foi comentado nada sobre os Globos por causa disto. Eu agora estou numa de Sherlock Holmes. Como o Robert Downey Jr ganhou tão inesperadamente. E estava para ir ver o "Nas nuvens". Já sei que é bom.
Se falassem do Invictus ou da Bela e o Parazzo para a semana era bom, mas normalmente não falam desses filmes. Espero é que a revista de Fevereiro já fale dos Globos. E ainda faltam as nomeações para os BAFTA.
Sauda-se o regresso.

25 de janeiro de 2010 às 09:53  
Anonymous Paulo Ferreira said...

Começo por saudar o regresso do Bruno a este blog que tanta importância ganhou para mim, pricipalmente no ano de "descanso forçado" da Premiere, e desejar que não se repitam muito mais vezes estas ausências tão prolongadas de tão admirável escriba. :)

Quanto ao "Avatar", concordo plenamente que o cavalo de batalha da falta de originalidade do argumento utilizado pelos detratores do filme já cansa. Aliás, o próprio Hitchcock dizia que em sonhos lhe tinha surgido a melhor ideia base do mundo para um filme, e que esta não era mais do que "boy meets girl"...

Sem me querer alongar muito mais, apenas gostaria de me interrogar acerca de um aspecto: tendo sete dos oito críticos da Premiere atribuido uma classificação de 4 a 5 estrelas ao filme, porque que carga de água publicaram a crítica do único que deu 3 estrelas? Não teria sido um melhor tema para "polémica do mês" do que o filmezeco dos vampiros para pré-adolescentes? :p

26 de janeiro de 2010 às 12:30  
Blogger Princess Aurora said...

O que me aconteceu com o Avatar foi o seguinte: "está visto"!
Todas as pessoas se referem a esta obra como uma "experiênicia", pois, para mim uma experiência não é sinónimo de Cinema...lembram-se de Jurassic Park?? Bem eu lembrei-me dele o tempo todo quando estava na sala de cinema a ver Avatar...aí sim senti que estava a assistir a um marco cinematográfico!!! Não imaginam o meu ar de satisfação, eu de óculos 3D na cara quando apareceram aqueles animais (que pareciam dinossauros) a dar cabo dos aliens todos...dei por mim a pensar..o Spielberg fazia disto uma coisa genial!

27 de janeiro de 2010 às 23:31  
Blogger Ricardo said...

Welcome back...

A par de Sacanas sem lei, Avatar foi, por razões diferentes, o filme que mais me encheu as medidas nos últimos meses. Durante duas horas e meia, a obra de James Cameron leva-nos numa viagem.
Apesar do mérito de ter criado um universo único repleto de personagens alienígenas (gigantes de três metros de cor azul), o enredo do filme apresenta-nos uma história convencional. Há o tradicional boy meets girl e o romance que daí advém e que acaba por tudo superar, há heróis e vilões (uns querem impedir que os outros sorvam até ao tutano os recursos do planeta). Nada de original, portanto.
É verdade que o argumento está longe de ser perfeito, mas não faltam aspectos que fazem de Avatar uma experiência única. Nos primeiros minutos de filme percebemos a razão do criador de obras emblemáticas como Exterminador Implacável e Titanic ter demorado 15 anos a completá-lo. Os efeitos visuais e as cenas de acção são assombrosos, os cenários levam-nos a um admirável mundo, uma autêntica floresta tropical povoada de seres fantásticos.
Apesar de 60 por cento do filme ter sido feito com recursos às tecnologias mais sofisticadas, o trabalho feito pelos actores de carne e osso é bastante competente. O protagonista Sam Worthington, que por ocasião da estreia do 4.º capítulo da saga Exterminador Implacável me tinha captado a atenção, confirma o talento e dá mostras de poder ser uma das principais referências em filmes do género e, quem sabe, não só.
Tal como já ficara comprovado no excelente District 9, Avatar prova aos mais cépticos sobre filmes de temática alienígena que há ainda muitos caminhos a explorar e com potencial para deixar boquiabertos os amantes da Sétima Arte.

28 de janeiro de 2010 às 00:50  
Blogger JM said...

Eu não nego o valor visionário do filme. Mas para prémios de "Melhor Filme do Ano" há obras bem mais competentes em todos os aspectos da produção de um filme que merecem mais esse reconhecimento do que Avatar. Na minha opinião Inglourious Basterds é o justo vencedor dessa honra, nos variados prémios da indústria cinematográfica. Tarantino merece o reconhecimento que nunca teve por parte da indústria, nomeadamente por ter feito este ano um filme, a meu ver, perfeito em quase tudo. Com um argumento original de uma riqueza fenomenal.

28 de janeiro de 2010 às 19:17  
Anonymous André M. said...

Pois é... tudo o que havia para dizer de Avatar está dito... mais uma vez concordo que o filme não é nada de especial em termos de argumento, no entanto é sem dúvida um marco a nível estético e uma experiência única... já teremos vencedor de óscares, pelo menos nas categorias mais técnicas..
Ponto positivo para os actores, especialmente para Zoe Saldana... Sam Worthington continua a dar mostras de ser um valor para o futuro, depois do excelente trabalho que tinha feito em Exterminador Implacável: A Salvação...
E James Cameron continua a demonstrar que nasceu para dirigir mega produções!
Para finalizar, concordo absolutamente com Paulo Ferreira (polémica do mês com "Lua Nova"???).
Continuação do bom trabalho e boas visualizações...

1 de fevereiro de 2010 às 01:06  

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