Tudo a seu tempo. 2010 em 2010. 2011 em 2011. Nada de colocar a carroça à frente dos bois. No entanto, se pudermos deixar já uma nota sobre aquilo que está aí para vir, não se perde nada. É ir buscar a agenda, e apontar para mais tarde recordar. Por estes dias, o universo cinematográfico é Sundancêntrico. Todos os caminhos vão dar a Park City. E, se alguma coisa aprendemos com as anteriores edições deste Festival, foi a guardar o que parece ser bom de guardar, pois daqui por uns meses isto é capaz de estar entre o que de melhor apareceu durante o ano. O mais recente buzz proveniente de Sundance dá-nos conta de um filme com Annette Bening, Julianne Moore e Mark Ruffalo que não deve passar despercebido. Em The Kids are All Right (Lisa Cholodenko), Bening e Moore dão vida a um casal homossexual, com dois filhos nascidos por inseminação artificial. Estes acham que é chegada a altura de conhecer o pai biológico (Ruffalo) e consideram que este devia passar a fazer parte da vida familiar.
Em Park City, as primeiras reacções deixam muito boas indicações. Tim Grierson, do Screen Daily, dá o mote:
“But these observations on the film’s politics should not overshadow The Kids Are All Right’s likeable, sometimes silly nonchalance. This effortless, just-for-fun quality extends to the cast. Moore and Bening have been guilty in the past of producing overly studied performances, but they make Jules and Nic thoroughly convincing as an ordinary, devoted long-term couple. Ruffalo is superb as a free spirit who has gotten through life on his carnal appeal”.
“Cholodenko gets memorable performances from Annette Bening and Julianne Moore as the flawed, self-involved but profoundly human partners in a long-running relationship that’s hitting one of those slippery, middle-age danger zones (...) Cholodenko draws out one of Ruffalo’s best performances, capturing Paul as a sweet, sad Peter Pan figure whose principal sin is a sudden longing for what he can’t have. (...) “The Kids Are All Right” ranks with the most compelling portraits of an American marriage, regardless of sexuality, in film history”.
No entanto, é Peter Knegt, do IndieWire, que, de peito feito, diz o que todos queríamos ouvir.
“The performances are across the board fantastic, and it would not be a surprise if a year from now Bening, Moore and Ruffalo all find themselves in contention for Oscar nominations. (...) But wherever “Kids” ends up, audiences should prepare for something truly special: One of the most endearing and genuine cinematic portraits of a contemporary American family, and one that just so happens to be reared by a same-sex couple”.
É que, assim de repente, não estamos a ver actrizes mais subvalorizadas que Bening e Moore. Tirando Emily Watson, claro está. O material sobre este título disponível na net ainda não abunda, mas já dá para encontrar uma entrevista com Moore, e os filhos nesta película, Josh Hutcherson e Mia Wasikowska.
As nomeações para os Oscars estão aí ao virar da esquina – próxima terça-feira, 02 de Fevereiro, com Anne Hathaway a subir ao palanque por volta das 13h30 – e, está mais do que na hora de começar a mandar as últimas postas de pescada. Apesar de a Academia de Hollywood ter alterado a data da cerimónia, passando-a novamente para finais de Março, por cá, muitos dos títulos mais falados nesta corrida às estatuetas continuam por estrear. Digam-nos para quando está marcada a entrega dos prémios, e dir-vos-emos quando é que os filmes chegam às salas. Na categoria de Melhor Actriz, então, é uma razia. Nada pior do que estar no locar de trabalho, ir buscar um copo de água ao cooler, e não ter uma opinião formada sobre a interpretação de uma dada actriz nomeada para um Oscar. Aquilo que podia ser um agradável quarto de hora no paleio, transforma-se num conciso Ainda não vi, que só o patrão agradece. Por esta altura, duas actrizes assumem a liderança. Meryl Streep (Julie e Julia) e Sandra Bullock (The Blind Side). Só o acto de juntar estes dois nomes na mesma frase causa alguma estranheza. Contudo, por mais resistentes que possamos ser a esta ideia, parece que Bullock arrancou mesmo um desempenho assinalável, que a coloca neste mana-a-mana com Streep. A rainha de Hollywood, por sua vez, uma habitué nestas lides, caminha a passos largos para a sua 16ª nomeação, e ninguém pergunta porquê. A grande questão que se impõe, no fundo, é saber se a Academia aceitará de bom grado voltar a recambiar a actriz para casa de mãos a abanar. Streep já não ganha um Oscar há 27 anos, e deslocou-se treze vezes consecutivas a esta cerimónia apenas para aplaudir e anunciar vencedores. Há quem diga basta, e que um terceiro Oscar faz todo o sentido, nem que seja em jeito de homenagem. É um argumento. Quem terá ainda uma palavra a dizer é Carey Mulligan, por An Education. A sua interpretação captou atenções pela primeira vez há um ano, no Festival de Sundance de 2009. Foi a primeira candidata a candidata e, para muitos, é ainda a grande favorita a arrecadar o troféu. Contudo, neste momento, a sua campanha parece estar a perder algum fulgor e, caso Mulligan se antecipe a Streep e Bullock, não deixará de ser uma surpresa. O mesmo se aplica a Gabourey Sidibe (Precious). Estas quatro são as melhor posicionadas para ver o seu nome na lista de nomeadas. O que deixa uma vaga em aberto. Helen Mirren (The Last Station), Emily Blunt (Young Victoria) e Marion Cottilard (Nine) são os nomes apontados. Sem desprezar Zoe Saldana, deixe-se ficar aqui o nome da protagonista de Avatar. A nossa aposta para completar o rol: Mirren.
Até ao momento, um dos títulos mais badalados a passar pelo Festival de Sundance, que está aí na berlinda até ao próximo dia 31, foi The Runaways. A exibição do filme, no passado Domingo, juntou uma pequena multidão que precisou somente de meia dúzia de minutos para deixar as primeiras impressões na web. Há umas décadas, a ideia inicial de Redford consistia num certame caseiro, acolhedor, capaz de deitar alguma luz sobre películas de difícil acesso ao comum dos mortais. Hoje, é ver a romaria de celebridades que se fazem ao indie por questões curriculares, enquanto, nos bastidores, se bebem chocolates quentes com contratos a bater nos milhões de dólares. Ora, levar Kristen Stewart, cara de uma saga tão lucrativa como Twilight, a um Festival que cada vez mais se confunde com uma qualquer parada de estrelas – não confundir forma com conteúdo –, só podia terminar neste alvoroço. Uma vez assente a poeira, podemos verificar que a película suscitou opiniões distintas. Houve quem gostasse até à quinta casa. Houve quem gostasse, só. E, como não podia deixar de ser, houve quem tenha dado o tempo por mal empregue. Jeff Wells, do Hollywood-Elsewhere, diz de sua justiça:
“For the most part Floria Sigismondi’s The Runaways (Apparition, 3.19) is an absorbing, highly charged, better-than-average ’70s rock saga. I’m giving it a solid B. Maybe a B-minus. The reasons for the voltage are Kristen Stewart’s scrappy performance as Joan Jett, the Runaways co-founder who went on to become a solo rock legend in the ’80s, and Michael Shannon’s as L.A. rock impresario Kim Fowley. And the music, of course”.
Baseado no livro da vocalista Cherie Currie (Neon Angel), o biopic versa sobre o famoso grupo de rock feminino que lhe dá nome. Uma reflexão sobre as experiências de uma estrela da música em ascensão, em plena década de 70. Um manifesto anti-droga a ser entendido como sinal de alerta. Aqui fica o teaser trailer.
Apenas para concluir, duas notas sobre a fotografia que ilustra este texto. A primeira, que Kristen Stewart partilha do dom de Johnny Depp, conseguindo ser sexy mesmo quando tem aquele ar desgrenhado de quem acabou de acordar. A segunda, que ao lado de três pessoas maior de idade, Dakota Fanning já não é a mais baixa do grupo. Parece que podemos dizer que a actriz está a ficar… bué Dakota – a chamada piada homófona, pois funciona quer com Bué Dakota, quer com Buéda cota.
O calendário de estreias nacionais sofre mais alterações do que a face de um adolescente com problemas de acne – como sempre, fala-se aqui com conhecimento de causa. Neste preciso instante, prevê-se que no próximo dia 18 de Fevereiro cheguem três homens às nossas salas. O Sério, o Lobo e o Solteiro. Caso a agenda se mantenha, o que é pouco provável, este será um dos fim-de-semana mais preenchidos do ano. Se considerarmos que An Education continua a ter lançamento marcado para este mesmo dia, então, podemos concluir que aquela semana terá todos os condimentos para proporcionar uma óptima maratona cinematográfica. Nem vale a pena fazer outros programas. Agora, quanto aos homens que chegarão por essa altura, por muito peso que o trunfo Coen tenha, e por muito apelativa que seja a carta de um action flick com Benecio del Toro, tudo o que tem sido critica à estreia de Tom Ford na realização leva-nos a olhar para A Single Man com um brilhozinho diferente, numa data tão ocupada. No entanto, não por causa de Tom Ford. O grande culpado é Colin Firth. Em abono da verdade, A Serious Man e An Education são inclusive apontados como fortissimos candidatos a uma nomeação para os Oscars na mais importante categoria. A Single Man, por sua vez, parece não entrar nessas contas. Onde o filme tem aparecido, tantas e tantas vezes ao longo da presente temporada de prémios, é à frente do nome de Colin Firth, quando se faz referência à película pela qual o actor está nomeado pela sua interpretação. Há quem não hesite em considerar Firth como o grande candidato à estatueta deste ano. Que estará nos cinco finalistas, parece ser unânime. De todas as apreciações, destaque-se a de Betsy Sharkey, no LA Times:
“Center stage, of course, is Firth. Without him to provide the soul, all that saturated beauty would count for nothing. He holds George together with such care and breaks him apart just as carefully. One of many grace notes comes as he takes the call telling him of Jim’s accident. There is such stillness as the words hit him, as if to react would be to make it real”.
Dizer que Colin Firth é a principal razão para ver um filme onde entra também Julianne Moore, quer dizer muito.
O filme já esteve para sair em Setembro. A estreia passou depois para Outubro. Daí para cá tem vindo a cair aos trambolhões todas as semanas, aterrando, para já, na segunda de Março. Parece que, por um lado, Sam Mendes já não merece a atenção de outros tempos, e, por outro lado, John Krasinski e Maya Rudolph não têm ainda direito a receber a atenção que já mereciam. Em traços largos, é mais ou menos isso que se passa com o lançamento de Away We Go. Em português, Um Lugar Para Viver. Contudo, não é para lamentar este adiamento que aqui estamos. Pelo menos, não só por isso. A verdadeira razão prende-se com um vídeo, no mínimo, pitoresco. A jornalista e comunicadora Bonnie Steiger sentou-se com a dupla de protagonistas para dois dedos de conversa sobre a película, e o resultado foi uma entrevista a atirar para o twilight zone. Se a ideia era pautar pela diferença no press junket, o objectivo deve ter sido alcançado.
Tudo o que tem Tim Burton é muito mais baril do que aquilo que não tem Tim Burton. Por exemplo, a dispensa lá de casa. Ficava seguramente muito melhor se tivesse uma prateleira só para Burton. De igual modo, qualquer carro seria muito mais valioso se transportasse Burton no porta-bagagem. Uma t-shirt que mostre apenas a figura despenteada de Burton com aqueles óculos dégradé, revela-se muito mais apelativa do que qualquer outra. Tim Burton está para o Cinema, como o preto para o vestuário. Vai bem com tudo. Não existem cineastas consensuais, mas ainda estamos para conhecer a miserável criatura a caminhar sobre este planeta que não vá à bola com este realizador. A última coisa a tornar-se muito melhor do que já era, simplesmente por associar-se a Tim Burton, foi o Festival de Cannes. Depois de já ter sido membro do júri nas categorias de curta-metragem e longa-metragem, Burton foi convidado para presidir o certame deste ano. Ora aí está algo que só abona a favor da Croisette. Sobre a selecção, o realizador foi parco em palavras.
“After spending my early life watching triple features and 48-hour horror movie marathons, I’m finally ready for this”.
A edição deste ano decorrerá de 12 a 23 de Maio. Agora, como quem não quer a coisa, aqui fica o mais recente clip deAlice no País das Maravilhas.
Já dizia o outro que andamos todos ao mesmo, carneiro amigo. E, enquanto a saga Twilight fizer jus à máxima certificada na mítica canção dos Pink Floyd, facturando milhões em todo o mundo que é uma barbaridade, é provável que alguns nomes sonantes comecem a girar em órbita desta onda vampírica sem fim à vista – asseguram-nos que serão apenas quatro filmes, tantos quanto os livros, mas quem é que acredita mesmo? Segundo a MovieScore Magazine, o último a aderir foi Howard Shore, compositor por excelência das películas de David Cronenberg, homem que deu cor às partituras da Terra Média ao lado de Peter Jackson, e que conta com três Oscars no bolso, em outras tantas nomeações. Isto é que é aproveitamento. James Newton Howard continua injustamente na extremidade oposta do espectro. Depois de Carter Burwell no primeiro filme, e Alexandre Desplat em New Moon, é a vez de Shore ser lançado aos leões, perdão, vampiros, e orquestrar qualquer coisa a dar para o medonho. Sem dúvida, uma mais valia para David Slade.
Quando a notícia de que um filme baseado no livro O Hobbit seria mesmo uma realidade, surgiu pela primeira vez, ainda Homer Simpson tinha cabelo. Pelo menos, mais do que três resquícios. Quando pensamos nos títulos mais aguardados para os próximos tempos, tendemos com frequência a deixar de parte a adaptação do prelúdio de O Senhor dos Anéis. Tal dever-se-á talvez ao facto de a pré-produção do dito cujo andar num pára-arranca intermitente que parece não levar a lado algum. Sem querer afirmar que a fé está abalada, confessamos apenas ter já suspirado muito menos pela chegada deste título. Num artigo recentemente publicado pela Variety sobre as mudanças ocorridas na New Line, a páginas tantas, uma achega sobre este título:
“[Warners top dog Alan] Horn won’t predict when the first of the two Hobbit films will be out, but says the most probable scenario would be a release in the fourth quarter of 2012”.
Isto é, mais um ano do que havia sido calendarizado previamente. Há quem diga que a venda e reestruturação da MGM não têm ajudado. Há quem diga que o casting tem sido o cabo dos trabalhos. Seja como for, ou Guillermo Del Toro se atira a outro projecto para passar o tempo, ou podemos ficar um bocado sem ter um flick do cineasta no grande ecrã. E, não nos parece que Del Toro seja daqueles que aguenta estar três anos a olhar para o mesmo guião. Agora, esta espera toda pode ser exactamente o que o filme precisa. De modo a fazer justiça à matéria-prima, bem como ao trabalho de Peter Jackson, que nada se apresse. Leve-se o tempo que for preciso. Uma experiência tântrica pode apenas se traduz num êxtase mais acentuado. Se o filme for de alto lá, quanto mais tempo demorar a chegar, melhor.
Para melhor se compreender a extensão do impacto provocado pela experiência Avatar – isto é que é recuperação da matéria dada –, será indispensável deitar uma ou duas pitadas de Psicologia à mistura, colher e meia de experiência pessoal, e deixar marinar durante meia hora com o senso comum em lume brando. No final, é retirar a critica quando estiver bem tostadinha por cima, pulverizar com os chavões da praxe, e servir à mesa. Bom apetite. Alguma indisposição, é rever Up como digestivo.
Quando, em finais de Agosto, teve lugar o tão aguardado visionamento de quinze minutos do mais recente título de James Cameron, este que se assina partia de férias para uma mais do que merecida semana – única no último ano, note-se – de dolce fare niente. O significado da data, e o que estava implícito nas duas frentes de lazer, dificultaram a flexibilidade que se impunha para abarcar o melhor de dois mundos. Que, tantas vezes se diz, erradamente, ser impossivel de ter. Veja-se, para não irmos mais longe, o caso de Jake Sully. O melhor deste mundo e do outro na palma da mão. De nada valeram, portanto, os três meses passados a salivar, à espera de tão justa sorte. À mesma hora em que meio milhar de felizardos entrava nas salas para visitar Pandora, antes de todos os outros enteados, Alvy Singer olhava cabisbaixo por uma janela, desejando com todas as ganas à disposição que aquele mega-trailer fosse antes uma mega-banhada. Literalmente. Com detectores de incêndio a funcionar, contribuindo para o espectáculo. Escusado será dizer que a dita semana foi tudo menos de descanso. Pese embora o corpo não tenha sido submetido a grande desgaste físico, psiquicamente, um avatar havia sido criado e transportado a mente para uma qualquer sala de cinema nos antípodas. Seguiram-se cinco penosos meses. A excitação era mais que muita, e as fotografias, trailers e featurettes com que fomos brindados ao longo da espera, em nada ajudaram para combater a ansiedade. Pelo contrário. No fundo, as campanhas de marketing de Hollywood cingem-se à mais simples regra de sedução. Quanto mais se vê, mais se quer ver. Erotismo puro.
Agora, esta angústia conduz-nos a uma outra, e é neste ponto que metemos Carl Rogers ao barulho. Rogers, conceituado psicólogo norte-americano do séc. XX, postulou um dia a existência de dois selves. O self real e o ideal. O ideal será aquele que, como está mesmo a dizer, idealizamos intrinsecamente. O real, aquele que temos na verdade. A distância entre os dois ditará algo pomposo que cognominou de incongruência. Ora, mas porque carga de água é que estamos aqui a falar deste Rogers e fomos buscar estes conceitos à sua bibliografia? Até há bem pouco tempo, Alvy Singer vivia com uma tremenda incongruência cinéfila. Tudo por culpa de George Lucas e Gene Roddenberry. Longe de ser um tipo invejoso – basta ver a parte da banhada para comprová-lo –, confesso sempre ter sentido uma ligeira ponta de ciúmes da geração de 70. Se entendermos a cinéfilia como uma paixão, talvez possamos conceber a ideia de um filme como objecto de amor, sem entendê-la enquanto patologia. Nesse sentido, sempre questionei o porquê de aquela década ter levado com dois fenómenos cinematográficos inter-planetários, e a década de noventa ter ficado a chuchar no dedo. E, quem diz a de noventa, diz também a do duplo zero. A década de oitenta teve The Terminator e Blade Runner, por isso, não se pode queixar muito. No fundo, o que se pedia era o bilhete para um mundo desconhecido. Para uma realidade paralela, estranha ao comum dos mortais, com uma aura única e cativante, que nos fizesse querer comprar um bilhete só de ida, e deixar o T2 do lado de cá a alugar. Alguns poderão indagar, justificadamente, se não tivemos já direito a algo do género neste milénio. E, é bem visto pegar no trabalho de Peter Jackson. Pertinente, mesmo. Contudo, há aqui um aspecto que faz a diferença. Para a mística ser completa, exige-se que a odisseia seja original. Criada de raíz. Ao pegar numa história com mais de meio século, Jackson não atingiu os píncaros da histeria tão habituais nestes casos. Mesmo assim, ainda houve por aí gente a sair de casa para o trabalho apenas com um robe verde, em homenagem a Frodo Baggins. Por esta altura, estarão os detractores a afirmar que Avatar tem tanto de original como a Viva la Vida, e que James Cameron se limitou a recorrer ao Microsoft Paint para dar uma nova tonalidade a Pocahontas. Sempre que um argumento desta natureza vem à baila, recordo o lamento de um guionista pela pro-actividade de outros tempos. Dizia ele – o nome está debaixo da língua, mas uma afta impede a sua remoção – que já não havia histórias boas para contar. Os gregos contaram-nas todas. E, mesmo essas, Shakespeare fez o favor de retocar. É certo que esta contra-argumentação apresenta praticamente as mesmas lacunas da ideia que pretende refutar. Importa então sublinhar que a originalidade, ou falta dela, presente em Avatar, não se assume como critério de avaliação por excelência. Pelo menos, não para este cinéfilo de meia leca. A meio do filme era já perceptível que a incongruência de sempre estava prestes a ser resolvida. E, essa passou a ser a maior preocupação. A certa altura, a dúvida instalou-se. Queres ver que está-se aqui a criar um fenómeno geek como há muito não se via?, disse para com os meus botões. Não responderam. Todas as criticas lidas, todas as achegas dadas aqui pela redacção, todos os artigos que versavam sobre a maluqueira que se havia instalado deixavam antever uma experiência marcante, inovadora e potencialmente agradável. Cambada de mentirosos. O filme é muito mais do que isso. Sabemos que alguma coisa não bate certo quando, já muito depois de termos saído da sala, no recanto do lar, alguém se vira para nós e diz Caramba, é só um filme. Nada mais dilacerante do que uma crua e dura chamada à realidade. Se, pela mão da Disney e Pixar voltamos a ser crianças, com Avatar deixamos de ser quem somos. Na manhã seguinte, pouco minutos depois de ter saído da cama, cedi à tentação de colocar novamente os óculos 3D. A desilusão não podia ter sido maior. Para além de uma tremenda tontura, não se avistaram Na’vis em lado algum. Nem o chão se iluminou à nossa passagem, nem montanhas sobrevoavam as nuvens mais altas. Subscrevo por inteiro a tese que defende nem sempre gostarmos de um filme de que gostamos. Paradoxal? Nem tanto. Há mais de quinze anos que A Lista de Schindler(Steven Spielberg, 1993) se encontra no topo da lista de preferências deste que se assina. Não ocupando o primeiro lugar, está perto. Agora, em década e meia, contam-se pelos dedos de uma mão – e não precisos todos – o número de visionamentos de tão magnífica película. Ao mesmo, todos os dedos do corpo não chegam para contabilizar as vezes que os Dvd’s de O Bom Rebelde ou Casino Royale já entraram no leitor. Um pouco o mesmo que se passa com o cozido à portuguesa. De longe, o prato de eleição de Alvy Singer. Contudo, manjar este mimo da culinária lusa diariamente, não só traria graves consequências estomacais daqui por uns anos, como rapidamente se traduziria numa perda do encanto. O cozido é divinal, mas doseado. Já o bitoque, também sabe sempre bem, e sai com muito mais frequência. No fundo, nem sempre gostamos de rever um filme de que gostámos, e muito. Deste modo, não termos vontade de rever uma determinada obra, não significa necessariamente que não morremos de amor por ela. O contrário, já não é tão verdade. Se, mal o filme termina, a vontade passa por voltar logo ao inicio, então, temos amor para o resto da vida. Não tem nada que saber. A película marcou-nos de tal maneira, que não queremos que se vá embora. Com Avatar, no entanto, aconteceu-me algo que, até hoje, nunca me havia acontecido. E, duvido piamente que algum dia volte a acontecer. Com a voz de Leona Lewis a ecoar das colunas, quando as luzes se acenderam, não só praguejei ruidosamente por o raio do filme ter terminado, como desejei secretamente que o meu mundo não fosse este. Quem é que nunca sonhou viver um romance como o de Rick e Ilsa? Bem, não propriamente como o deles, mas aceita-se a retórica. Quem é que nunca fantasiou em cruzar-se com um Fauno ao fim da tarde? Exacto. Agora, com Avatar, o devaneio não se esgota em conhecer, cruzar, ou viver. O desejo passa por habitar, estar lá, e adoptar outra realidade. O texto já vai mais que longo, e ainda nada que se aproveite foi dito. Contudo, não creio poder ser mais explícito do que isto. Chamem-me avatard, chamem o que quiserem, mas o filme de James Cameron não foi o melhor filme que vi em 2009. Foi a melhor brochura do mundo que desejava coabitar, que alguma vez me foi apresentada. Se há filmes que são mais do que isso, este é um deles. Agora, dizem-me que, tal como em 1977, ano em que Star Wars chegou às salas, talvez o maior êxito cinematográfico da temporada não tenha a pujança suficiente para superar a elegância e simplicidade de um outro título mais pequeno. Parece que anda por aí malta a comparar Jake Sully com Anakin Skywalker, e Woody Allen com George Clooney. Dentro de poucas horas será altura de ver Nas Nuvens. Mais logo falamos.
Como o cônjuge que regressa a casa sorrateiramente, depois de uma longa estadia num hotel da cidade, quando a noite já vai alta, certificando-se assim que todos dormem nas suas camas, hoje voltamos a este espaço. Agora é dormir, que amanhã há Cinema. Em muitos outros lares, e neste também.